Tenho você em meus braços noturnos
Nas noites de cíclopes
Filhos de Gaya
Te possuo em turbilhões do centro de tudo
E é como andar descalço
No areião de minha aldeia mãe
Fragmentos peneirados das memórias afetivas de três autores que residem em diferentes países, unidos originariamente pela massa do mesmo barro massapê
Tenho você em meus braços noturnos
Nas noites de cíclopes
Filhos de Gaya
Te possuo em turbilhões do centro de tudo
E é como andar descalço
No areião de minha aldeia mãe
Os botões se abriram um a um
A pele macia e o dorso em curvas sinuosas
A boca carmim desejosa
A respiração essência tão agradável
Suspiros em carnes tremulas
A unidade da lascívia
Nervos enrijecidos
O movimento das arvores da alameda
A sincronia com os movimentos de cá dentro
A invasão do exército de homem só
A cidadela foi sitiada
As muralhas foram ao chão
A donzela se estremece
Frenesi
Estupor
Transe
Lua em céu estrelado
Noite que não acabe
O amor seja eterno
A cidadela está protegida
Muralhas reconstruídas
Jardins em flor
Fontes a jorrar
A cidadela está protegida
A donzela se estremece
Os botões se abrem
Lábios se encontram
Os botões…
Comi todo mundo
Todo mundo me comeu
Todo mundo se comeu
Ninguém era dono de ninguém
Era carnaval
Era bacanal
Nem era real
Era mesmo só poesia
Banal
E era carne fresca cheirando a sangue
E sei que também fui servido naquela mesa farta
Não sei se meu sabor era doce ou amargo
Mas me saborearam
E lamberam-se beiços e dedos
E nesse lambe-lambe
Lambi cavidades e protuberâncias mil
Sem nojo
Sem repulsa
Todo mundo se deu bem
Voltei para casa farto
Quase a explodir
Fui glutão
Pierrôs e Colombinas se empanturravam
E me provaram o sabor
E lhes provei seus sabores
Para trás apenas o rastro branco dos empoados
Nas velhas ruas de ladeiras íngremes
As janelas estavam fechadas
Todos estavam no bloco
Era carnaval
O carnaval nosso de cada dia nos dai hoje
Pelos séculos dos séculos
Amém!
E veio a quarta-feira de cinzas
Na matriz a hipocrisia escancarada nas caras surradas
Pedaços de de pó ainda caiam da pele sem banho
Marcada pelos puxões e chupões
Deus perdoai-nos
Mas a carne é que vale
Enquanto vivo, vivo na carne
Enquanto carne, estamos vivos
Aquele padre ainda essa noite passada
Foi colombina
Seis quilómetros separavam o Centro Velho dos Oliveira do Povoado do Clemente. Quatro ladeiras, duas que subiam e duas que desciam. O trajeto era fácil já que contava com a sombra das árvores que ladeavam o velho caminho.
O Clemente, às margens da BR entre Tuntum e Barra do Corda. A BR era apenas uma rodagem esburacada, de piçarra solta. Pela nuvem de poeira no horizonte se percebiam os poucos carros que a transitavam. Por duas vezes na minha vida, montado numa cangalha sobre um dócil jumentinho, nos dirigimos à cidade, minha aldeia, Barra do Corda. 30 quilómetros que deveriam ser percorridos no mesmo dia. A viagem era enfadonha mas era uma novidade que quebrava a rotina modorrenta daqueles dias naquele lugarejo.
Quatro ladeiras intermináveis que eu contava desde o Clemente até Barra do Corda. Ao subirmos à última delas, nas margens da rodagem, uma vegetação esquisita de folhas grandes e deformadas, completamente cobertas pela poeira e que lhe davam uma coloração marrom. Pareciam anunciar maus agouros. Se Hitchcock as tivesse, talvez as teria usado para ajudar dar ar ainda mais sombrio aos corvos fantasmagóricos de seus filmes.
Informaram-me que eram jurubebas e que para nada serviam. Eram espinhentas e de difícil acesso. Produziam um fruto igualmente esquisito que amadurecia sem mudar de cor. Nem para sombra serviam.
Hoje, se eu voltasse àquele mesmo lugar, com muita sorte ainda as encontraria e lhes reverenciaria como seres tão importantes do ponto de vista natural e cósmico quanto qualquer outro. E sei que, tirada a poeira que o progresso lhes impõe, muito bem enfeitariam o meu arranjo de flores num rico vaso da minha sala.
As jurubebas empoeiradas daquela BR ficaram para trás, nascidas qual erva daninha. Na minha memória já opaca pelo tempo, elas permanecem tão vivas quanto as lembranças da minha infância e das poucas vezes que saí daquele bioma de sonhos que se chamava Centro Velho dos Protestantes.
Wan Lucena
Esta crónica foi originalmente publicada na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos.
Dizer tanto, dizer quase tudo em pouco tempo e espaço, viajar um enorme país e suas áridas dores, seus cortes, sua fome, suas misérias e dores...
Sobreviveremos a elas?
... ou nos restará apenas o voo cego, com asas de bananeira, rumo ao fundo do abismo?
Senhor poeta, bravo!
*Um comentário numa portagem de Facebook ao multi artista Celso Pires Araújo
https://www.facebook.com/100001596161626/posts/4848658141864010/
Eu
venho do outro lado, irmã
Eu venho da luz
Eu tive que descer até as trevas
Fazer o processo de volta é muito difícil
a gente não parece mais tão puro
mas a gente sabe de qual lado veio
Eu venho da luz, irmã
E vc voa comigo ao meu lado nessa viagem que, afinal
termina por ser um grande prazer do qual nunca saímos incólumes
Eu venho da luz, irmã
Para Urias Matos
Hamburgo 10.10.202