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domingo, 17 de abril de 2022

Aldeia Mãe - por Lu Mota


Tenho você em meus braços noturnos

Nas noites de cíclopes

Filhos de Gaya

Te possuo em turbilhões do centro de tudo

E é como andar descalço 

No areião de minha aldeia mãe


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Botões - Por Wan Lucena

Os botões se abriram um a um

A pele macia e o dorso em curvas sinuosas

A boca carmim desejosa

A respiração essência tão agradável 

Suspiros em carnes tremulas

A unidade da lascívia 

Nervos enrijecidos 

O movimento das arvores da alameda

A sincronia com os movimentos de cá dentro

A invasão do exército de homem só

A cidadela foi sitiada 

As muralhas foram ao chão 

A donzela se estremece

Frenesi

Estupor 

Transe

Lua em céu estrelado

Noite que não acabe

O amor seja eterno

A cidadela está protegida

Muralhas reconstruídas

Jardins em flor

Fontes a jorrar

A cidadela está protegida

A donzela se estremece

Os botões se abrem

Lábios se encontram

Os botões…


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Carne Santa - Por Wan Lucena

Comi todo mundo

Todo mundo me comeu

Todo mundo se comeu

Ninguém era dono de ninguém 

Era carnaval

Era bacanal

Nem era real

Era mesmo só poesia 

Banal

E era carne fresca cheirando a sangue

E sei que também fui servido naquela mesa farta

Não sei se meu sabor era doce ou amargo

Mas me saborearam

E lamberam-se beiços e dedos

E nesse lambe-lambe

Lambi cavidades e protuberâncias mil

Sem nojo

Sem repulsa

Todo mundo se deu bem 

Voltei para casa farto 

Quase a explodir 

Fui glutão 

Pierrôs e Colombinas se empanturravam

E me provaram o sabor

E lhes provei seus sabores

Para trás apenas o rastro branco dos empoados

Nas velhas ruas de ladeiras íngremes 

As janelas estavam fechadas

Todos estavam no bloco

Era carnaval

O carnaval nosso de cada dia nos dai hoje

Pelos séculos dos séculos 

Amém!

E veio a quarta-feira de cinzas

Na matriz a hipocrisia escancarada nas caras surradas

Pedaços de de pó ainda caiam da pele sem banho

Marcada pelos puxões e chupões 

Deus perdoai-nos

Mas a carne é que vale

Enquanto vivo, vivo na carne

Enquanto carne, estamos vivos

Aquele padre ainda essa noite passada

Foi colombina

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Jurubebas Empoeiradas

Seis quilómetros separavam o Centro Velho dos Oliveira do Povoado do Clemente. Quatro ladeiras, duas que subiam e duas que desciam. O trajeto era fácil já que contava com a sombra das árvores que ladeavam o velho caminho.

O Clemente, às margens da BR entre Tuntum e Barra do Corda. A BR era apenas uma rodagem esburacada, de piçarra solta. Pela nuvem de poeira no horizonte se percebiam os poucos carros que a transitavam. Por duas vezes na minha vida, montado numa cangalha sobre um dócil jumentinho, nos dirigimos à cidade, minha aldeia, Barra do Corda. 30 quilómetros que deveriam ser percorridos no mesmo dia. A viagem era enfadonha mas era uma novidade que quebrava a rotina modorrenta daqueles dias naquele lugarejo.

Quatro ladeiras intermináveis que eu contava desde o Clemente até Barra do Corda. Ao subirmos à última delas, nas margens da rodagem, uma vegetação esquisita de folhas grandes e deformadas, completamente cobertas pela poeira e que lhe davam uma coloração marrom. Pareciam anunciar maus agouros. Se Hitchcock as tivesse, talvez as teria usado para ajudar dar ar ainda mais sombrio aos corvos fantasmagóricos  de seus filmes.

Informaram-me que eram jurubebas e que para nada serviam. Eram espinhentas e de difícil acesso. Produziam um fruto igualmente esquisito que amadurecia sem mudar de cor. Nem para sombra serviam.

Hoje, se eu voltasse àquele mesmo lugar, com muita sorte ainda as encontraria e lhes reverenciaria como seres tão importantes do ponto de vista natural e cósmico quanto qualquer outro. E sei que, tirada a poeira que o progresso lhes impõe, muito bem enfeitariam o meu arranjo de flores num rico vaso da minha sala.

As jurubebas empoeiradas daquela BR ficaram para trás, nascidas qual erva daninha. Na minha memória já opaca pelo tempo, elas permanecem tão vivas quanto as lembranças da minha infância e das poucas vezes que saí daquele bioma de sonhos que se chamava Centro Velho dos Protestantes. 


Wan Lucena


Esta crónica foi originalmente publicada na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos.






quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A Ceia dos Escaravelhos - por Wan Lucena

Na casinha umilde de telhas quebradas, pelos buracos no telhado ela vê a lua. Por causa da goteira, a rede sempre precisa mudar de lugar. Na cozinha o fogão ainda é de lenha e as panelas limpinhas tentam a dignidade mesmo que vazias. A boca está sem dentes e as rugas são tão profundas quanto a sua solidão. Já curvada pela idade, ainda busca água em latas, no rio que fica lá embaixo daquela ladeira, seu moço! As chinelas de cabresto quebrado, receberam um prego para lhe servir por calçados aos pés rachados. A fumaça trespassa as telhas apenas uma vez ao dia. Ela comerá feijão temperado apenas com sal e, para acompanhar, apenas farinha seca. Faz tempos que não pode comprar temperos ou óleo. Arroz, ela usa o xerém, muito mais barato e que se deveriam dar às galinhas por ração. Tantas histórias ela tinha para contar, mas já não mais se lembra delas. Ela não teve filhos e sempre morou sozinha. Nunca teve parceiro ou marido. Ainda assim, guarda certa doçura. Ela sabia que seu fim seria mesmo assim. Não lutou contra ele já que concentrou todas as energias na sobrevivência. Entretanto, com a miséria jamais se acostumou. Mas, se rendeu depois de tanta luta inglória. Semi analfabeta, sempre viveu com quase nada. E  busca na natureza próxima o que precisa para a sobrevivência. Quando era a época do pequi, se embrenhava no carrasco e voltava com o cofo cheio. Hoje já não mais tem forças para se embrenhar nas matas e apenas espera a morte. Ela catava tudo, desde brotos de cajá a cascas de inharé. Com muita vergonha, escondida pela penumbra, se escondia dos olhares da hipocrisia enquanto, madrugada a dentro, procurava restos nos lixos alheios. Ela agora espera apenas a boa hora! A morte lhe será por benção. Será encontrada ressequida ou putrefata. Talvez algum ser humano, desses em escassez, lhe cave 7 palmos de terra e lhe deposite junto à mãe terra. Senão, terá ao menos a lua a lhe olhar pelo buraco no telhado enquanto escaravelhos dela se alimentam.

Asas de Bananeira - Por Lu Mota

Dizer tanto, dizer quase tudo em pouco tempo e espaço, viajar um enorme país e suas áridas dores, seus cortes, sua fome, suas misérias e dores...

Sobreviveremos a elas?

... ou nos restará apenas o voo cego, com asas de bananeira, rumo ao fundo do abismo?

Senhor poeta, bravo!

*Um comentário numa portagem de Facebook ao multi artista Celso Pires Araújo 

https://www.facebook.com/100001596161626/posts/4848658141864010/

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Eu Venho da Luz - Por Wan Lucena

 

Eu venho do outro lado, irmã

Eu venho da luz

Eu tive que descer até as trevas

Fazer o processo de volta é muito difícil 

a gente não parece mais tão puro

 mas a gente sabe de qual lado veio

Eu venho da luz, irmã

E vc voa comigo ao meu lado nessa viagem que, afinal

 termina por ser um grande prazer do qual nunca saímos incólumes

Eu venho da luz, irmã 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Eu vejo Deus - Por Lu Mota


Eu vejo Deus na tua letra
Nas tuas vírgulas e interrogações
Acaso duvidas quando interrogas?
Ou a interrogação é para sintetizar a exclamação?
Eu vejo Deus em todos os teus versos
Nos que dizes e nos que recitas aos anjos nas noites de breu ou nas noites claras como sol, só que sendo lua
E as estrelas... sabe as 5 pontinhas? Deus tá lá! De chapéu de palha! Pendurado na pontinha, quase caindo... E sabe pra quê? Pra cair no teu colo. Ou seria para te aparar antes de você se estatelar no chão?
Ah, pode ser os dois! Porque Deus é tudo isso. Deus é um, e dois, é mil. E se assim não fosse mermão, como daria conta dessa humanidade comédia que nós somos?
Deus é nós e nós somos deuses
É só mergulhar em mim que Deus ta lá, lindinho! E quando olho para Deus, dentro dos olhos do seu coração, me vejo lá, refletida e guardada, enrolada nos teus poemas, que são deus.
 

Para Urias Matos

 

 



 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Horas Minhas - Por Lu Mota

.

Horas minhas...
só comigo...
Sozinha...
vem!
Caminha...
desalinha...
Toca em mim, a campainha
que me faz ver que a linha
é ténue,
mas descaminha.
Mas não importa,
e sim complementa
minha poesia torta
que vai bater em tua porta
e te convidar à dança
de criança
de ciranda, de rodar, de olhar
e ver que tudo que você deixou
Está no mesmo lugar
...até o nosso amor.
 
Birigui, 12/10/2021

 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A Tríade de Crianças na Olaria - Por DoraliceSegelke

Foi em umas férias da escola, depois de seus afazeres domésticos que Lili, procurando crianças para brincar à tarde, foi comedida de uma repentina tomada de consciência ao perceber que no engenho e olaria do seu pai, havia crianças que não tinham férias pois nem sequer estudavam, tampouco tinham horários para brincarem.
 
O pai de Lili, era o dono das terras, que contratava o feitor, que contratava o trabalhador. Então havia, a menina filha do dono das terras o menino filho do feitor e a filhinha do trabalhador. 
 
O pai de Lili explicava-lhe que culpa era do Governo e que devíamos dar graças, pelas terras que tínhamos e por poder oferecer trabalho para famílias tirarem o sustento para a boca seca e abafarem o ronco do estômago.

As famílias encontravam-se na porteira da entrada do sítio, davam-se bom dia sorrindo,   separavam-se na forquilha da vereda que levava umas para o canavial, outras para o engenho e outras para a olaria, cada uma para seu viver, no espaço do mapa dos destinos para elas designados. Parecia não haver infelicidade naqueles que pelo menos, tinham um trabalho.

Lili trabalhava a manhã inteira ajudando a mãe nos serviços domésticos que eram muitos para a sua idade, só tinha liberdade para brincar depois de varrer e arrumar a enorme casa e quintal lavar louças, arear panelas e alumínios até ficarem brilhando, dar banho alimentar e botar para dormir as irmãs pequenas. 
 
Os anjos do céu trataram de unir três daquelas crianças que comiam manga debaixo dos mangueirais. Quando perceberam, já era uma tríade que mesmo, vindas de situações diferentes, tinham uma profunda empatia..

Uma bonequinha de cristal que tinha muito orgulho do seu pai e o acompanhava nas festas da Igreja, trajando lindos vestidos de voil rendados, um soldadinho de cristo todo empetecado de bermuda bem engomada, camisa de gola, colete e boina em tecido xadrez, que ia para a igreja nos domingos, somente para a gradar o grande amor de sua vida a sua mãe e uma bonequinha de pano, que só tinha um vestido de chita florida e sonhava com tamancos babucha, apaixonada pelo pai, tanto que preferia dormir ao lado dele no barracão da olaria.
 
Nas suas tardes de folga a bonequinha de cristal aparecia na olaria querendo brincar. 
A fim de que sobrasse tempo para brincarem juntos ela ajudava os coleguinhas a terminarem mais cedo, as tarefas na olaria. 

O trabalho era pesado, corrido e de movimentos repetitivos sob um sol ardente. Aquelas famílias e suas crianças, ficavam embuçadas de barro vermelho, *liguenta, aspirando a fumaça do crepitar dos galhos verdes no fogo das caieiras o suor caindo pela testa o dia inteiro.

Foi ali que Lili descobriu que havia crianças que trabalhavam mais duramente que ela. Muito disposta, Lili aprendeu a enquadrar tijolos nas formas e encantou-se pela arte de moldar vasos de cerâmica. 

As brincadeiras dos três eram ao ar livre correndo atrás de borboletas, ou fazendo piqueniques regados a inocência! Lili trazia arroz, sardinhas e ovos e outros enlatados, a tríade colocava numa trempe sobre brasas panelinhas de barro, feitas por elas próprias e cozinhavam e banqueteavam-se.

Passaram-se anos o mundo deu voltas a Terra girou sobre o próprio eixo e agora aquelas três crianças que cortaram os oceanos de seus destinos, reencontraram-se novamente.

Hoje Lili acha que crianças têm ajuda dos extraterrestres, senão não fariam um trabalho tão exaustivo, dia a dia mês- a -mês, ano- após ano, sem sucumbirem ao desânimo e por desgosto e definharem.

O mundo não via aquelas três crianças, não havia um olhar de compreensão. Era o milagre da Natureza protegendo crianças, em uma condição inóspita, onde só a espécie mais forte sobreviveu. 

Lili, sequer teve uma boneca, era sujeita a cumprir a sina já pré estabelecida antes de nascer! Tinha que ajudar a cuidar de sete homens, crescer casar-se e repetir o destino de sua mãe.

Nem um olhar de cuidado com aquelas duas crianças na olaria, sem tempo para brincarem e que em vez de irem a escola, amassavam o barro, molhado com o suor de seus frágeis corpinhos, protegidos do sol ardente, apenas com o xaile de seus próprios fados.

 

Hamburgo 10.10.202